domingo, 9 de setembro de 2012

Dona Izolina

Uma página na vida da Dona Izolina:


Hoje, domingo, foi dia de visita.
Já tem cinco dias que eu estou aqui. Como não tem vaga nas enfermarias, fico aqui mesmo na grande ala do pronto-socorro. Já acostumei. Quando a crise vem forte, não tem jeito, é preciso vir para cá.
Logo cedo as enfermeiras, e teve também um enfermeiro, passaram aqui sorridentes e depois do café começaram a nos dar banho. Eles são carinhosos, fazem o seu trabalho sorrindo. O mocinho, que eu até já conheço, brinca bastante comigo, acho que é pra eu não ficar constrangida por ser um homem a me dar banho. “Dona Izolina, hoje vou até passar creme cheiroso, é dia de visita, daqui a pouco tua filha tá aí!”.
A gente vai vendo a necessidade, sabe que precisa ser cuidada e vai se acostumando.
Um domingo desses, cheio de sol, e eles aqui trabalhando, dando banho na gente que não consegue levantar. Deixam de passear com os filhos, almoçar com a família. Sou muito agradecida a eles.
Minha filha chega. Eu sei que ela fica incomodada de me ver ali, mas eu vou logo falando de como sou bem cuidada pelos enfermeiros e pelos médicos também. Hospital público tem suas dificuldades, mas não é de todo ruim não.
Minha filha senta na cadeira ao lado da minha cama e como de costume traz a revista semanal que eu sempre gostei de ler. Ela lê pra mim depois da gente conversar dos meninos, do serviço dela, do meu genro.
A reportagem que está na capa, fala do direito de escolher sobre sua própria morte. É um assunto incômodo, mas peço a ela que continue.
Agora é permitido fazer um documento e registrar o tratamento que deseja receber quando a morte se aproxima, chama-se testamento vital. Se você deseja que sua vida seja prolongada ao máximo, deixa escrito. Se não quer que se prolongue um sofrimento que não será revertido, registra.
Olhei atentamente as fotos dos médicos que ilustram a matéria e  suas falas.
A visita encerrou. Já ouço os passarinhos se alvoroçando para o entardecer e fico aqui com meus pensamentos sobre aquela reportagem. Tem um médico lá que disse que “é vital ter um médico de confiança”. Bem, é claro que ele não usa o sistema público de saúde onde temos excelentes médicos, mas a cada dia é plantão de um e não do outro e a gente já fica feliz de ser atendido. E reza pra ele fazer o melhor pela gente. No dia seguinte já é outro, não importa. Ele vai me cuidar também.
A doutora escreve bonito, parece até poesia. “Quero um beijo de boa-noite e de bom-dia. Que as portas do quarto estejam fechadas”. Ela certamente nunca esteve numa ala coletiva onde se faz o possível, coloca-se um biombo na hora do banho, mas não há portas a fechar.
Venho pensando em tudo isso.
Venho lembrando da minha mãe que contava da morte da mãe dela. "Ela me chamou e disse: Izolina, pega aquela caixa em cima do guarda-roupa, ali tem a minha mortalha, o terço que vou levar nas mãos; a roupa você pode escolher. E naquela mesma noite ela se foi, ali na sua cama".
O primo Romualdo que foi picado por cobra peçonhenta e nem deu tempo de chegar ao hospital.
Fico pensando em todas essas pessoas aqui neste hospital público, os doentes, os médicos. Fico pensando que não quero dar trabalho à minha filha. É tão confuso para mim entender. Antes era Deus quem sabia a hora e agora?

4 comentários:

  1. Lindo,Ana Paula e nos remetes a esse tema atual. Eu quero ficar aqui apenas enquanto não tiver que ficar unida aos fios, aparelhos.Assim, assino qualquer papel, pra me deixarem ir livre, solta e voando,sr beijos,chica

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  2. Oi Ana,
    minha mãe, semana passada, ficou internada durante 6 dias com problemas circulatórios. Por melhor que sejam as acomodações, dá uma sensação estranha de finitude... Me vi no lugarzinho dela, tão pequena e frágil. Como somos frágeis. É bom refletirmos sobres temas como este. Tão nossos, tão humanos.

    Bom início de semana e eutimia

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  3. Lindo texto. Esse assunto é realmente muito complicado. Não sei se gostaria de passar talvez anos ligada a aparelhos.
    Bom, te desejo muita paz e saúde.
    Beijos.

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  4. Ana Paula, muito bonita essa postagem. Gostei muito dos detalhes do conto. Aprendi também uma coisa interessante. Muitas vezes, por causa de nosso excesso de preocupação e da incapacidade de resolver coisas sem solução, passamos ao doente, nosso ente querido, uma insegurança (nossa) que o incomoda a ponto dele não querer que se preocupem com o tratamento que está recebendo. Ele já não aguenta mais técnicas e nem "mágicas". Ele quer o nosso sorriso, o nosso carinho, a nossa presença e se possível a música dos pássaros e o barulho da natureza. O resto só incomoda, né?
    Beijo
    Manoel

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